Entrevista a João Pereira Coutinho: "A democracia é apenas a antecâmara da tirania"
É acometido pelo pesadelo de ter de passar a eternidade a explicar o que seja a ironia a quem o treslê, leva muito a sério a tribalização das sociedades que renegam a defesa do indivíduo, mas acredita nas virtudes da sátira política até porque descobriu em rapaz, ao ler o brasileiro Machado de Assis, que sempre é devido "ao vencido, ódio ou compaixão; ao vencedor, as batatas". O cronista tem novo livro sobre pandemias e invasões.
Desde 2004 que não coligia crónicas centradas em Portugal, mas com a geringonça, a pandemia e a guerra, passou a fazer sentido uma nova coletânea? Houve um período que acho muito indistinto na política portuguesa depois da eleição do engenheiro José Sócrates. As crónicas desses anos não davam para reunir num volume que tivesse uma identidade própria. O que senti foi que desde 2015 até 2022 aconteceu algo de novo. Em primeiro lugar, foi, obviamente, a pandemia e, em segundo lugar, do ponto de vista internacional, a situação de guerra na Ucrânia.
Esse conflito vinha de 2014.
Sim, mas esta invasão em larga escala marca algo de novo. É difícil imaginar quais serão as consequências geopolíticas e não só. Há uma sensação de fim de festa, ou como dizia o Francis Fukuyama há uns tempos do "fim do fim da História".
Numa destas crónicas afirma ter feito parte "daquela geração que entrou na adolescência com Portugal na CEE e o fim da história ao virar da esquina". Depois, as coisas mudaram com o 11 de Setembro de 2001 e, agora, estamos perante "o fim de algo e o início de outra coisa". É esta a cronologia da sua análise?
É um bocado. No caso da minha geração, que nasceu depois do 25 de Abril e após o 25 de Novembro, houve um período um bocado arcádico em que Portugal entra na CEE, o País conhece uma vaga de progresso assinalável. Depois, há um arrefecimento deste clima de suspensão da História com o 11 de Setembro a que se segue a crise financeira de 2008, mas creio que, agora, estamos a viver o fim da ordem liberal ou pelo menos a ameaça real à ordem liberal que emergiu com o fim da Guerra Fria.
Numa crónica de janeiro de 2017, por ocasião da morte de Mário Soares, escreveu: "O Portugal de hoje ainda é o Portugal que Soares defendeu e ajudou a construir." Presumo que tivesse em vista, sobretudo, uma matriz política liberal e de estado de direito. Não teme que esse Portugal esteja em risco?
Sim, não apenas em Portugal, mas na Europa. O funcionamento de qualquer democracia liberal implica basicamente duas coisas. Primeiro, um elemento democrático com eleições livres regulares e concorrência entre partidos que, apesar de tudo, se mantém no continente europeu. O grande problema está em saber se a segunda dimensão, o elemento liberal, se mantém ou se, pelo contrário, a Europa caminha para o iliberalismo para usar uma expressão tornada célebre pelo primeiro-ministro da Hungria, Viktor Órban. Existe o risco óbvio de podermos acabar com democracias em que a parte liberal ou foi posta seriamente em causa ou foi destruída por completo. Nesse sentido não dou por adquirido que a democracia liberal seja a fórmula segura, eterna, que as pessoas pensam. Aliás, nem sequer a democracia. Os clássicos avisavam que a democracia é apenas a antecâmara de uma situação de tirania. Se adotarmos um raciocínio cíclico das formas de governo, a democracia é apenas mais um estágio que provavelmente abrir-se-á para algo de pior. Portanto, não dou nada por adquirido.
Nota: Pode ler a entrevista na íntegra na edição impressa da Sábado de 18 de agosto de 2022.
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