Paulo F. Oliveira Fontes: "Que significa celebrar o 10 de junho?"
Como acontece todos os anos, a 10 de junho celebra-se o «Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas», na data atribuída à morte do autor de Os Lusíadas, o grande poema épico nacional. No período da Primeira República, a data começou por ser celebrada como feriado municipal em Lisboa, depois elevado a feriado nacional pelo Estado Novo, que o rebatizou como “Dia de Camões, de Portugal e da Raça”, numa perspetiva nacionalista e imperial, tendo sido transitoriamente celebrado como “Dia das Comunidades” nos anos sequentes à revolução de 25 de abril, para adquirir a atual designação em 1978, no quadro da estabilização do novo regime democrático. Na sua continuidade, o feriado do 10 de junho visa assim prestar homenagem a Portugal, aos portugueses, à cultura lusófona e à presença portuguesa por todo o mundo, sendo comemorado em Portugal e, desde 2016, junto das comunidades portuguesas no estrangeiro (cf. art. 2º, Decreto-Lei n.º 20-A/2016, de 27 de abril).
O 10 de junho constitui um dos quatro feriados nacionais com que oficialmente o país celebra cívica, cultural e politicamente a identidade pátria: 10 de junho, 5 de outubro, 1º de dezembro e 25 de abril. Com a celebração de cada um destes feriados, o país realça alguns dos traços considerados marcantes no modo de Portugal se definir e entender como nação, tendo por base a evocação de alguns marcos do passado. Assim, e respetivamente: o 10 de junho celebra a sua história e cultura, definidas e compreendidas em chave de leitura universalizante; o 5 de outubro comemora o regime político proclamado em 1910, sublinhando simultaneamente as ideias de cidadania e de civilidade para que a ideia de República aponta; o 1º de dezembro assinala o valor da soberania e independência nacional, resultante não apenas de um ideário filosófico, mas de uma vontade política historicamente reafirmada com a restauração de 1640, após a união dinástica vivida com a vizinha Espanha; o 25 de abril festeja o valor da liberdade e da democracia modernas, enquanto forma de afirmação e respeito pelos direitos humanos, na sequência da revolução de 1974, e tendo como fundamento explícito “a dignidade da pessoa humana” que a Constituição da República Portuguesa de 1976 expressamente reconhece no seu artigo 1º.
A existência destes quatro feriados políticos nacionais, a par dos feriados de cariz religioso, diz muito da complexidade que é o entendimento da identidade nacional de um país, na sua unidade e diversidade. É verdade que Portugal é o mais antigo Estado-nação da Europa com as suas fronteiras continentais praticamente inalteradas, o que muito contribui para o facto de não existir um problema de identidade nacional, como acontece com outros Estados europeus modernos, nomeadamente a vizinha Espanha. No entanto, afirmar que “Portugal é uma nação” levanta múltiplas questões relativas à definição e vivência de uma identidade poliédrica, à expressão de sentimentos pátrios, ao reconhecimento e vivência das diversas comunidades culturais que hoje assumem e manifestam esta identidade comum, historicamente caldeada (cf. José Manuel Sobral – Portugal, Portugueses: uma identidade nacional. Lisboa: Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2012). E aponta para necessidade de se conhecerem e estudarem propostas de leitura global, com diversas perspetivas e produzidas partir das mais diversas áreas do saber, como a geografia (Orlando Ribeiro – Portugal, o Mediterrâneo e o Atlântico, 1943), a geopolítica (Jorge Borges de Macedo – História diplomática portuguesa: constantes e linhas de força, 1978), a cultura (Eduardo Lourenço – O Labirinto da Saudade: psicanálise mítica do destino português, 1978), a história (José Mattoso – Identificação de um país, 1986-1988), a filosofia (José Gil – Portugal, Hoje: o medo de existir, 2004), a biologia (Mário Ruivo – Do mar oceano ao mar português, 2015) ou a poesia (José Tolentino Mendonça – Discurso no 10 de Junho de 2020), entre outras.
A reflexão sobre a identidade e destino de um país permanece uma questão sempre atual, mas à qual urge estar atento em tempos de globalização e de polarizações ideológicas simplificadoras. Só o estudo crítico do passado conjugado com a observação e leitura atenta da realidade presente poderá ajudar a contrariar visões simplistas e redutoras da complexidade social. Este um dos desafios que hoje se colocam às Universidades, em geral, e ao estudo das Humanidades, em particular.
Este ano, as comemorações do Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas tiveram início na África do Sul. Em Portugal, as festividades do 10 de junho terão lugar em Peso da Régua, no contexto da designação do Douro, Património da Humanidade, como Capital Europeia do Vinho em 2023. Celebremos!
Paulo F. Oliveira Fontes
Historiador, professor da Faculdade de Teologia e diretor do Centro de Estudos de História Religiosa (CEHR)