Dia da Implantação da República | "Da monarquia à república" por José Miguel Sardica

A 5 de outubro de 1910, Portugal assistiu à mais simbólica mudança de regime político da sua longa história, deixando de ser uma monarquia, como era desde a fundação, no século XII, e passando a ser uma república, forma de regime que, na conjuntura europeia ao tempo, existia apenas em França e na Suíça. O país foi, portanto, original em dois aspetos: operou a única grande transição de regime político na parte ocidental da Europa até à Grande Guerra e constituiu-se pioneiro da vaga de republicanização do continente que marcaria o pós-Guerra.

Dotada da força de uma promessa salvífica para a crise decadentista nacional, a propaganda republicana anterior a 1910 e o discurso – que muita historiografia iria consagrar – do regime posterior a 1910 cunharam a imagem da monarquia constitucional oitocentista, deposta naquele dia, como um status quo caduco, reacionário e opressor. É necessário desmistificar esta lenda. A crise da monarquia final, de D. Carlos e de D. Manuel II, foi a versão portuguesa de um fenómeno europeu mais vasto, que tocava vários países em diferentes graus: o da desadequação do liberalismo oligárquico e de notáveis à era das massas, da segunda industrialização, da urbanização e da democracia. Os múltiplos problemas provindos da transformação social, da penúria financeira, da instabilidade governativa e da erosão institucional expuseram o trono a uma usura comprometedora, no caso de D. Carlos porque quis intervir, como monarca moderno que foi, com ação corretiva sobre o sistema, no caso de D. Manuel II porque recusou intervir (com receio de acabar como o pai, assassinado em 1908), enveredando por uma tíbia “acalmação” que foi, na verdade, uma demissão monárquica, abrindo o vazio que o golpe militar em Lisboa aproveitou, para depois cunhar a imagem de uma maciça e triunfante revolução popular.

A 1.ª república portuguesa durou dezasseis agitados anos e morreu, em 1926, às mãos dos militares de Gomes da Costa, num estado de erosão interna semelhante ao que liquidara a monarquia. Nasceu, de facto, estribada na promessa de democratizar e de modernizar o país, que, todavia, seguiu sendo pobre, rural e analfabeto. Fracassou, porém, como regime, tanto pela distância em tantos aspetos cavada entre a ideia republicana e a sua concretização quotidiana, como pela opção suicidária de fazer o país participar na 1.ª Guerra Mundial, mergulhando-o numa renovada crise…de onde viria a Ditadura Militar e, depois, Salazar e o Estado Novo. Imprudente ou atraiçoada, democrática ou jacobina, modernizante ou caótica, a 1.ª república portuguesa será um eterno estudo de caso, como uma consciência crítica, vinda do passado, acerca das possibilidades e dos limites ou erros da democracia em Portugal.

Quanto ao 5 de outubro, a sua revisitação histórica deverá servir para lembrar como o acontecido em 1910, à semelhança do que depois sucederia em 1926 e em 1974, revela que os regimes, no nosso país, caem por implosão, porque se desfazem, de forma autofágica, na sua incapacidade de autorregeneração, de reforma e de rumo. Não desejo, hoje, que a democracia vigente assim venha a cair. Mas para que isso não suceda, talvez valha ainda a utilidade do que o célebre conselheiro João Franco (líder do último governo do rei D. Carlos) escreveu, no ocaso da sua vida (e da república), em 1924: “os regimes sucumbem e desaparecem menos pela força do ataque do que pela frouxidão da defesa. Só tem direito à vida quem sabe fazer por ela”.  

José Miguel Sardica

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Quarta, 05/10/2022