#12 Da importância de escrever uma carta

O dia 18 de março de 2020 foi um momento importante na histórica pandemia que vivemos. Em Portugal, o Presidente da República declarava em prime time o estado de emergência, a primeira de três mensagens semelhantes que ouvimos ao ritmo de duas semanas. No mesmo dia, cerca de duas horas antes, a Chanceler alemã Angela Merkel dirigia-se aos seus concidadãos, também pela televisão, apelando à unidade para fazer face a um desafio histórico. No tom sério e ponderado que a caracteriza, a Chanceler encontrou também uma palavra pessoal:

“Todos nós temos de encontrar formas de expressar afeto e amizade: por Skype, com um telefonema, por e-mail e talvez até escrevendo uma carta. Afinal, o correio continua a ser entregue.”

Entre as formas de solidariedade e proximidade ao alcance de cada um, Merkel apelou a que se escrevessem cartas.

É comum ouvir da geração pré e já universitária que isso de escrever cartas é muito anos 80 – a década antes do seu nascimento representando um tempo anterior ao seu, historicamente já muito distante.

O que há, pois, de relevante numa forma assíncrona de comunicação nos dias que correm, em que não responder a uma mensagem de chat é passar à irrelevância e ao esquecimento? Como pode uma carta ser relevante para falar de uma pandemia que parece mudar de hora a hora?

Os benefícios da escrita expressiva (em forma de carta ou de entrada num diário) têm sido muito estudados em psicologia, associados a efeitos positivos na saúde, da diminuição da ansiedade à melhoria da qualidade do sono. O trabalho de James Pennebaker desde o início dos anos 80 é um bom exemplo desta investigação.

Para além destes trabalhos, a troca epistolar é uma prática social antiga de comunicação privada, e ainda um fenómeno cultural importante, como comprovam as contínuas reedições da correspondência entre escritores, pensadores, artistas ou intelectuais que marcam a nossa história cultural. O permanente fascínio que exercem as trocas de cartas entre estas pessoas é a promessa de nelas vislumbrar o lado humano de quem escreve e lê: a precária fragilidade de Van Gogh nas cartas ao seu irmão Theo, a afinidade intelectual que cedo se torna mais entre Hannah Arendt e Martin Heidegger ou a resposta de Hermann Hesse ao jovem Peter Weiss, aconselhando-lhe um caminho na encruzilhada em que este se encontrava: “Talento tem certamente, quer como poeta, quer como artista. Os seus desenhos parecem-me mais amadurecidos e independentes do que os seus textos. Imagino que alcance mais depressa a realização e o reconhecimento como pintor do que como poeta.” Na verdade, foi como escritor que Weiss viria a ser reconhecido, um dos autores alemães no exílio mais importantes no século XX.

A correspondência de grandes nomes, porém, nem sempre é endereçada aos seus pares, nem tem por objeto questões existenciais. É o caso de um pequeno conjunto de vinte e três cartas descobertas ao fim de quase um século e editadas pela primeira vez em 2013.[1] O autor é Marcel Proust que nelas se dirige à sua vizinha Mme. Williams, esposa de um dentista cujo consultório se encontra mesmo sobre a casa do escritor. Um tormento de ruído para o frágil Proust, desde cedo confinado ao apartamento, não por uma pandemia, mas por uma saúde débil.

De que falam, pois, estas cartas que viajam de um apartamento ao outro entre dois vizinhos que não se terão nunca encontrado? Escritas entre 1909 e 1916 elas testemunham a cordialidade entre duas pessoas que partilham os problemas de saúde que os afligem, o consolo que ela encontra na música (Mme. Williams toca harpa) e ele na escrita de Em busca do tempo perdido, que começa a ser publicado em 1913 e pelo qual a vizinha mostra genuíno interesse: “Possa o meu livro ter-lhe dado tanto prazer como o que tive ao ler a sua carta.” (p. 54)

Nestas cartas lê-se a gentileza de Proust, que pretende ganhar para a causa do silêncio uma aliada com o poder de parar o barulho do apartamento de cima, que tanto lhe incomoda o sono e o trabalho. Entre as inúmeras referências aos ruídos que lhe chegam ao apartamento, Proust escreve sobre as obras no apartamento sobre o seu, em curso na ausência de Mme. Williams: “Geralmente um pintor, sobretudo em edifícios, crê ser seu dever cultivar-se ao mesmo tempo na arte de Giotto e de Reszké. Este último cala-se, enquanto o eletricista martela. Imagino que, ao regressar, a Senhora encontrará ao seu redor nada menos do que os frescos da Cistina...” (pp. 66-67)

Isolados nas suas casas, estes vizinhos não são alheios à realidade em volta. Em outubro de 1914, as cartas falam da guerra, das “horas terríveis em que tememos por todos os que amamos” (p. 42), ou dos constrangimentos que impõe ao escritor e à publicação do seu opus magnum: “A Guerra chegou, o segundo e o terceiro volumes não puderam ser publicados, naturalmente.” (p. 46)

As cartas continuam, sem outro fim que não seja o próprio prazer da escrita e o contentamento por vê-la apreciada pelo interlocutor: “Por graça da sua generosidade - ou por um jogo de reflexos – a Senhora concede às minhas cartas algumas das qualidades que as suas têm. As suas são encantadoras, encantadoras de coração, de pensamento, em estilo e em talento.” (p. 46)

Ler estas cartas de Proust a Mme. Williams em tempo de pandemia é testemunhar como o isolamento pode inspirar a eloquência e como o prazer na palavra e o jogo desta ressonância ajuda a mitigar a solidão.

Agora que a pandemia parece dar tréguas e o “fique em casa” vai dando lugar ao desconfinamento, a comunicação a distância é menos necessária, porque os encontros presenciais já vão acontecendo. Porém, as consequências das longas semanas longe da vida social demoram mais tempo a superar. Este é ainda o momento de tirar partido da escrita expressiva, seja lendo ou relendo a correspondência de figuras que nos inspiram, seja experimentando escrever a outro, que pode ser o nosso eu mais velho, como é sobreviver à pandemia em 2020.

Ana Margarida Abrantes

Coordenadora da Licenciatura em Línguas Estrangeiras Aplicadas, Docente na Licenciatura em Psicologia, Membro da Direção da FCH

 

[1] Proust, Marcel. 2013. Lettres à sa voisine. Avant-propos de Jean-Yves Tadié. Paris: Gallimard.

Categorias: Faculdade de Ciências Humanas

Sexta, 29/05/2020