#8 Porque as palavras contam

Por estes dias temos vindo a assistir à generalização do uso de expressões como “distanciamento social”, “etiqueta respiratória”, “isolamento social”, ou “cerca sanitária”, que depressa se alastraram dos discursos das entidades oficiais aos media e destes às conversas de todos os dias.

Se é certo que expressões como estas primeiro se estranham, é certo que logo a seguir se entranham. E num momento em que a preocupação com a saúde pública é prioridade absoluta, pareceria que a consideração da linguagem que se usa para falar desta pandemia e das suas implicações é um luxo para que não sobra tempo.

Mas que efeitos pode a linguagem ter sobre a forma como pensamos a realidade e depois agimos sobre ela?

A primeira observação é que estas expressões são fáceis de memorizar pela sua estrutura (um nome, um adjetivo), que tem associado um certo ritmo. Além disso, são generalizações em que cabem muitas ações singulares, e que as evocam ao serem usadas: etiqueta respiratória sintetiza muitos comportamentos, como lavar frequentemente as mãos, espirrar para o antebraço ou usar uma máscara. Todas estas ações estão imediatamente presentes quando se usa o termo genérico. Este é, portanto, uma designação eficiente.

Contudo, um olhar atento revela que muitas das expressões a que nos habituámos nesta pandemia são inerentemente negativas. Nem sempre é clara a sua origem no vocabulário da saúde pública. E por vezes são trocadas sem consequência por palavras ou expressões aparentemente próximas, mas de origem muito distinta.

Tomemos o exemplo de “distanciamento social”. A expressão tem origem no domínio da saúde pública e designa uma medida de controlo do contacto entre as pessoas, a fim de evitar a propagação de uma infeção ou de um vírus: manter as pessoas distantes entre si é uma forma de limitar a transmissão. Contudo, a expressão não é tão neutra afinal, ou não teria a OMS tido a necessidade de a substituir por “distanciamento físico”. A questão é como esta expressão é compreendida pelo público. O distanciamento social pretende ser apenas afastamento mas pode evocar alheamento, e a diferença mede-se pelo bem-estar mental das pessoas e pela harmonia social do conjunto. Naturalmente todos nós reagimos a esta súbita medida aumentando exponencialmente a comunicação, muito potenciada pelas novas tecnologias. Nunca se comunicou tanto – por Skype, telefone, e-mail, redes sociais e até pela janela – como em tempos de pandemia. Mas se o comportamento das pessoas se ajustou à necessidade de distanciamento, mantendo-se a distância, mas assegurando-se a socialização, onde está o problema?

O problema pode estar no entendimento global da situação, no “zooming out” que se faz da vida de cada um para o conjunto da sociedade. E na capacidade que expressões como “distanciamento social” têm de evocar sentidos que, não sendo o seu, estão próximos. Entre “distanciamento social” e “distância social” há uma diferença ténue, mas decisiva. Uma pesquisa rápida no Google mostra como por vezes são usadas como sinónimos, em notícias e até em textos oficiais. Este câmbio inofensivo pode trazer consequências nefastas. A expressão “distância social” (não “distanciamento”) é usada desde os anos 20 em sociologia para designar os graus de entendimento e intimidade nas relações pessoais e sociais, nomeadamente no contexto das relações interétnicas. Ou seja, a expressão designa o grau de contacto ou de afastamento entre grupos sociais, que se aproximam em contextos institucionalizados, como os ambientes de trabalho ou de serviços, mas que permanecem mutuamente alheios noutras circunstâncias. “Social” não aqui tem o sentido de ‘socializar’, ‘contacto’ ou mesmo ‘convivialidade’, mas aponta para estruturas mais ou menos rígidas de pertença e exclusão de grupos.

É certo que não teremos presente a origem do termo, mas olhando ao debate crescente sobre a desigualdade de oportunidades no acesso à educação a distância ou ao teletrabalho, à inevitável crise que se avizinha e a quem mais vai perder com ela, a expressão “distância social” em lugar de “distanciamento social” pode ter um contorno ominoso. “Social” aponta felizmente também para significados como ‘responsabilidade’ e ‘solidariedade’, que são argumentos muito usados na justificação de medidas drásticas implementadas pelos governos um pouco por todo o mundo.

Porque é que então as palavras têm este poder? As palavras funcionam como moldura, dando forma e enquadrando à realidade. Quando escolhemos uma palavra para falar de uma realidade que ainda não compreendemos, deixamos de lado outras que a podiam igualmente referir. E evocamos sentidos, mais conscientes ou mais subliminais, mas que estão presentes sempre que a usamos, condicionando de forma mais permanente o modo como pensamos essa realidade. Uma palavra não existe em isolamento.

Basta olhar à forma como ainda em março o Presidente francês Emanuel Macron se referiu a esta pandemia como uma guerra, para facilmente vermos o que está em causa: a legitimação de medidas restritivas como medidas de defesa e ataque a um inimigo identificado. Esta associação justifica expressões como ‘combater o vírus’, estar ‘na linha da frente’ ou ‘vencer’ a pandemia. Mas pode trazer consigo o efeito perverso de esquecermos ou minorarmos cenários como os que teimam no Iémen ou na Síria, onde a resposta tarda e não será certamente “fique em casa”.

A emergência é de saúde pública, mas a forma como decidimos falar sobre ela hoje pode influenciar como iremos gerir as suas consequências no futuro. O que vivemos é uma pandemia e resolver este problema está na mão de todos: distanciando-nos fisicamente dos outros, mas mantendo e até aumentando a socialidade. E sem esquecer que a distância é espacial, mas a responsabilidade é social.

Ana Margarida Abrantes,

Coordenadora da Licenciatura em Línguas Estrangeiras Aplicadas,

Docente na Licenciatura em Psicologia,

Membro da Direção da FCH

Categorias: Faculdade de Ciências Humanas

Seg, 04/05/2020